Martim,
ah Martim! Se visses a tua Igreja hoje, que tu nem querias que se dividisse...
Mais do que nunca a tua máxima "Ecclesia reformata semper reformanda"
é uma urgência inadiável.
Passaste
anos a fio dormindo em camas de pedra, batendo com açoite no teu lombo dorido,
atirando tinteiros em paredes que refletiam demônios, tudo para agradar um Deus
cruel, vingador, que cobra nos filhos os pecados dos pais e é tardio em
perdoar, mas extremamente zeloso em castigar.
Recusaste
o desejo do teu pai, que te tornasses advogado, para enterrar tua mente
atormentada pelo pecado num mosteiro agostiniano, para passar a pão e água e
expulsar o pecado do teu corpo. Consideravas-te maldito e eternamente
condenado; querias apenas um curto olhar de complacência do teu Deus, cruel e
intolerante.
Nada,
porém, aplacou o teu medo e o tormento da tua consciência culpada, culpada,
culpada. Cada versículo do AT e do NT não era uma libertação para ti, mas uma
chibatada, uma cobrança, algo que exigia uma justificativa e ainda mais
castigos corporais. Lias a Bíblia com os olhos do tormento; em cada palavra do
evangelho vias lei, lei e mais lei; para ti, para os teus, para os outros, para
todos...
E
então Paulo te resgatou, como num milagre de libertação: "O justo viverá
por fé!" E um novo dia raiou em teu coração. A implacabilidade divina
transformou-se em graça! A tua incapacidade de cumprir a lei transformou-se em
evangelho libertador! A intolerância com os outros e contigo mesmo tornou-se um
amor tão grande, mas tão grande, que abarcava todas as coisas e todos em tudo.
Em
sua nova visão do Deus gracioso, escreveste, apaixonado: “Se alguém quisesse
fazer uma pintura de Deus, ele teria que pintar um abismo de fogo – um forno em
chamas, repleto de amor em brasa. Deus é todo amor, sim, o amor é o próprio
Deus”. E entendeste: "A minha graça te basta". Essa extraordinária
descoberta trouxe uma luz tão grandiosa em teu ser que foste capaz de
transformar uma nação atormentada em um lugar de gente feliz, em paz com Deus,
livre das indulgências e pronta para transformar a Europa num lugar de
prosperidade, cultura, ciência e luz.
Martim,
se visses a tua Igreja hoje... "Lex dura Lex" é a máxima teológica de
muitos. O resgate de um Deus vingador, que está a léguas do amor e da graça
revelados tão penosamente em teu Filho, tomou conta de novo da tua Igreja. A
chibata, o medo, a perseguição, a intolerância, a vingança se instalaram entre
nós como meios de coerção, de temor e tremor. A Bíblia, tua santa palavra de
salvação e libertação, virou um codex implacável de regras para, obviamente,
exigir dos outros. O colo do Deus da salvação transformou-se em escuro abismo a
engolir milhões de seres, pobres e incapazes de cumprir tantas exigências,
regras e leis...
A
fé como único caminho para a justiça tem que ouvir: "Não basta crer! Não
crês que chega! Ainda tens que percorrer um longo calvário de camas de pedra,
pão e água, chibatadas e tinteiros estouradas nas paredes antes que a tua fé
possa abrir-te uma pequena fresta na resistente porta da salvação de
Deus!"
Martim,
ah Martim! Resgata de novo a tua igreja! As trevas insistem em instalar-se em
nosso meio e sufocam cada vez mais. Temo que a luz que um dia acendeste seja
novamente apagada... e muitos o farão solenemente, com orgulho no coração e com
a dureza dos bispos de outrora... Temo que reinstalem a Inquisição entre nós e
tornem a Graça um conceito banido.
Oro,
Martim, para que lembrem das tuas palavras nesta hora e não se olvidem das tuas
preciosas lições de graça e amor. Oro, Martim, para que teu sobrenome não seja
apenas uma logomarca na torre de igrejas que, de luteranas, ostentem apenas o
nome...
Autor: Pastor
CLOVIS HORST LINDNER
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