Assisti
esta madrugada, quase que por acaso, uma entrevista conduzida por Bial com três
pessoas marcantes sobre morte e sepultamento: a presidente do sindicato dos
agentes funerários, uma tanatopraxista – trata-se da pessoa que maquia o morto
para que tenha uma aparência mais agradável durante o velório – e um coveiro,
um senhor negro, já de certa idade, e que assumiu a profissão após ter estado
desempregado por algum tempo.
Pois
foi este último personagem quem mostrou maior respeito pelo morto. “Se eu não
respeitar o morto, como vou querer que respeitem o meu corpo quando for a minha
hora?”
Achei
que, entre os entrevistados, deveria ter havido também um pastor ou uma
pastora. Teriam trazido outros aspectos ao tema.
Porém,
a palavra “coveiro” mexeu comigo. Ainda existem coveiros? E o que fazem?
Minhas
lembranças correram ao passado. Como pastor, celebrei inúmeros sepultamentos.
Os primeiros tiveram sempre o trabalho de coveiros, daqueles de abrir a cova
com sete palmos de profundidade e depois cobrir o caixão com terra, pá após pá.
Isso demorava um tanto. Por isso, a comunidade cantava vários hinos seguidos.
Era
marcante como, às primeiras pazadas, a família enlutada desatava em choro
compulsivo. Contudo, o choro diminuía à medida que o caixão era coberto, até
que, ao final, quando as pessoas que acompanhavam a cerimônia cobriam o
canteiro com flores, se reduzia a alguns soluços engasgados.
Sempre
entendi que o tempo de se fechar a cova dava tempo de as pessoas enlutadas
absorverem o fato irreversível da morte. Haviam tido tempo pra curtir aquela
realidade.
Fiquei
surpreso quando ouvi pela primeira vez a palavra “carneira”. Sim, o
sepultamento seria em “carneira”, já toda feita de alvenaria, aberta apenas na
parte superior. Os coveiros eram agora também pedreiros. Custei a entender que
a “carneira” era a “comedora de carne”. O caixão era depositado naquela
estrutura, que era coberta com lajes, cimentadas na hora, depois do que se depositavam
sobre elas as flores. Ainda se cantavam vários hinos.
Não
demorou para que as lajes fossem apenas colocadas sobre a cova, e que as flores
logo fossem colocadas ali. Os coveiros-pedreiros cimentariam as lajes depois
que as pessoas já tivessem saído do cemitério. Cantava-se bem menos, e tudo era
mais rápido.
Um
pouco mais tarde, a carneira se transformava numa gaveta, com abertura na sua
parte inferior, para que, por ali se introduzisse o caixão. Alguns tijolos
fechavam a abertura rapidamente. Já não se jogava mais terra sobre o caixão.
Agora eram pétalas de rosas brancas. O canto era mínimo.
Hoje
é marcante a beleza e da pompa teatral da moderna cremação. Palco, cortinas que
se fecham, música cinematográfica.
Penso
que essa evolução pretendeu ocultar cada vez mais a morte, embelezá-la,
torná-la menos feia e dolorida. Pergunto-me se é assim mesmo para as pessoas
enlutadas, ou apenas para as pessoas que se sentem na obrigação de estar lá e
assinar o livro de presença.
Para
as pessoas enlutadas, o tempo de curtir a morte diminuiu até praticamente
desaparecer. A dor, o choro, o luto, ficam tanto mais para depois, quando se
percebe que “naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele tá doendo em mim”.
Aliás, essa é a hora de a gente ir visitar as pessoas enlutadas, talvez uma
semana depois do sepultamento.
*****
Também
os velórios mudaram. Já não são mais nas casas dos falecidos. Quando ainda o
eram, havia convívio quase que de festa. Café, sanduíches, chimarrão – lá na
cozinha, uma garrafa de pinga, especialmente de madrugada, quando se contavam
causos do falecido, enquanto seus familiares eram postos a dormir.
Vale
lembrar o belo conto de Jorge Amado, “A Morte e a Morte de Quincas Berro
D’água”. Não sei se ainda, mas, em alguns lugares do Centro-Oeste, os amigos
vão ao velório para “beber o morto”. Há um quê de festa nisso tudo.
Hoje,
nos necrotérios, a porta é trancada durante a noite, e os familiares vão dormir
em casa. Alegam-se riscos de assalto. E o defunto fica a curtir uma solidão
antecipada.
*****
Mudaram
os costumes. Porém, não mudou a morte. De nada adianta aos vivos enfeitá-la e
fazer de conta que ela só existe para os outros. Ela é a triste única certeza. Há
que assumi-la e abraçar com carinho os que ficam chorando ou sofrendo, calados,
a perda de quem se foi.
Fonte:
Facebook
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