sábado, 2 de novembro de 2019

Sobre morte, velório e sepultamento.




Assisti esta madrugada, quase que por acaso, uma entrevista conduzida por Bial com três pessoas marcantes sobre morte e sepultamento: a presidente do sindicato dos agentes funerários, uma tanatopraxista – trata-se da pessoa que maquia o morto para que tenha uma aparência mais agradável durante o velório – e um coveiro, um senhor negro, já de certa idade, e que assumiu a profissão após ter estado desempregado por algum tempo.
Pois foi este último personagem quem mostrou maior respeito pelo morto. “Se eu não respeitar o morto, como vou querer que respeitem o meu corpo quando for a minha hora?”
Achei que, entre os entrevistados, deveria ter havido também um pastor ou uma pastora. Teriam trazido outros aspectos ao tema.
Porém, a palavra “coveiro” mexeu comigo. Ainda existem coveiros? E o que fazem?
Minhas lembranças correram ao passado. Como pastor, celebrei inúmeros sepultamentos. Os primeiros tiveram sempre o trabalho de coveiros, daqueles de abrir a cova com sete palmos de profundidade e depois cobrir o caixão com terra, pá após pá. Isso demorava um tanto. Por isso, a comunidade cantava vários hinos seguidos.
Era marcante como, às primeiras pazadas, a família enlutada desatava em choro compulsivo. Contudo, o choro diminuía à medida que o caixão era coberto, até que, ao final, quando as pessoas que acompanhavam a cerimônia cobriam o canteiro com flores, se reduzia a alguns soluços engasgados.
Sempre entendi que o tempo de se fechar a cova dava tempo de as pessoas enlutadas absorverem o fato irreversível da morte. Haviam tido tempo pra curtir aquela realidade.
Fiquei surpreso quando ouvi pela primeira vez a palavra “carneira”. Sim, o sepultamento seria em “carneira”, já toda feita de alvenaria, aberta apenas na parte superior. Os coveiros eram agora também pedreiros. Custei a entender que a “carneira” era a “comedora de carne”. O caixão era depositado naquela estrutura, que era coberta com lajes, cimentadas na hora, depois do que se depositavam sobre elas as flores. Ainda se cantavam vários hinos.
Não demorou para que as lajes fossem apenas colocadas sobre a cova, e que as flores logo fossem colocadas ali. Os coveiros-pedreiros cimentariam as lajes depois que as pessoas já tivessem saído do cemitério. Cantava-se bem menos, e tudo era mais rápido.
Um pouco mais tarde, a carneira se transformava numa gaveta, com abertura na sua parte inferior, para que, por ali se introduzisse o caixão. Alguns tijolos fechavam a abertura rapidamente. Já não se jogava mais terra sobre o caixão. Agora eram pétalas de rosas brancas. O canto era mínimo.
Hoje é marcante a beleza e da pompa teatral da moderna cremação. Palco, cortinas que se fecham, música cinematográfica.
Penso que essa evolução pretendeu ocultar cada vez mais a morte, embelezá-la, torná-la menos feia e dolorida. Pergunto-me se é assim mesmo para as pessoas enlutadas, ou apenas para as pessoas que se sentem na obrigação de estar lá e assinar o livro de presença.
Para as pessoas enlutadas, o tempo de curtir a morte diminuiu até praticamente desaparecer. A dor, o choro, o luto, ficam tanto mais para depois, quando se percebe que “naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele tá doendo em mim”. Aliás, essa é a hora de a gente ir visitar as pessoas enlutadas, talvez uma semana depois do sepultamento.
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Também os velórios mudaram. Já não são mais nas casas dos falecidos. Quando ainda o eram, havia convívio quase que de festa. Café, sanduíches, chimarrão – lá na cozinha, uma garrafa de pinga, especialmente de madrugada, quando se contavam causos do falecido, enquanto seus familiares eram postos a dormir.
Vale lembrar o belo conto de Jorge Amado, “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água”. Não sei se ainda, mas, em alguns lugares do Centro-Oeste, os amigos vão ao velório para “beber o morto”. Há um quê de festa nisso tudo.
Hoje, nos necrotérios, a porta é trancada durante a noite, e os familiares vão dormir em casa. Alegam-se riscos de assalto. E o defunto fica a curtir uma solidão antecipada.
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Mudaram os costumes. Porém, não mudou a morte. De nada adianta aos vivos enfeitá-la e fazer de conta que ela só existe para os outros. Ela é a triste única certeza. Há que assumi-la e abraçar com carinho os que ficam chorando ou sofrendo, calados, a perda de quem se foi.

Fonte: Facebook


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