A noite esfriara consideravelmente depois da chuva torrencial que se
abatera sobre a cidade naquele final de tarde. Por sorte tinham conseguido
abrigar-se debaixo daquele viaduto. E, também por sorte, tinham chegado a
tempo.
Ainda na corrida, ela tinha sentido as primeiras dores. Debaixo do
viaduto, depois da corrida, o menino nascera rapidamente. Ele mesmo, que nunca
pensara em ter que fazer algo semelhante, ajudara no parto. O velho canivete,
que sempre carregava no bolso, servira para cortar o cordão umbilical.
Agora ela estava deitada ali, na cama improvisada que ele montara
com os trapos que carregavam no saco que os acompanhava em suas andanças por
tantos lugares, sem nunca encontrar um lugar de verdade. Desta vez, o lugar era
ali, debaixo do viaduto. E já não eram
só os dois, ela e ele. Agora havia também o menino que dormia sereno ao lado
dela.
Quase não o via naquela escuridão. A luz se fora em meio à
chuvarada. A noite estava duplamente escura, pois a lua e as estrelas ainda
estavam encobertas pelas nuvens. Via-o mais com os olhos do coração. E percebeu
que já o amava.
Uma lágrima escorreu-lhe morna pela face. Que futuro poderia dar a
essa criança? – Um tanto de raiva invadiu o seu peito. Perdera tudo, virara
andarilho e mendigo. E agora havia a criança, e ele não tinha em quem bater!
Estava mais frio agora. Seria bom fazer um foguinho para aquecer a
criança e a mulher. Achara alguns gravetos, mas não tinha fósforos. Também não
tinha em quem bater para extravasar sua raiva. Raiva da miséria, raiva pelo que
perdera, raiva por não encontrar nova oportunidade, raiva por não poder dar
futuro à criança.
- Deus proverá – dissera ela dias antes. E, ao dizê-lo, seu rosto
resplandecera ainda mais belo. Ele amava aquele rosto e tudo o que havia por
trás dele. E novamente sentiu raiva. Por ela. Pela criança. E não tinha em quem
bater para extravasar sua raiva.
Foi então que viu pela primeira vez aquele pequeno ponto luminoso.
Brilhara com força e, em seguida, desaparecera. – Agora estava ali outra vez.
Uma estrela? Assim, vermelha e solitária? Não, não era uma estrela. Um
vagalume? Também não.
Percebeu, então, que o ponto luminoso estava mais próximo. E sentiu
o cheiro da fumaça do cigarro. Apertou o canivete no bolso e preparou-se para o
pior.
- Boa noite – disse uma voz por trás da brasa do cigarro. – Não se
assuste! Somos de paz. Achamos que seria um bom lugar para passar a noite.
Percebeu que eram três os vultos que se aproximavam.
Os vultos notaram a mulher e o menino. Ele apertou o canivete no
bolso.
- Você não está sozinho – disse o do cigarro. – E há um bebê! –
exclamou, e apressou-se em jogar fora a bagana, apagando a brasa com o pé.
- Desculpe. Não havia percebido a criança, - falou. – Mas ela deve
estar com frio, e a mãe também.
- Até juntei gravetos, mas não tenho fogo, - ele disse.
De pronto o do cigarro lhe alcançou uma caixinha de fósforos.
- Tome, - disse. – Aqui também tem um pouco de papel. Sempre carrego
papel comigo, exatamente para poder fazer um foguinho à noite. Espanta o frio e
os mosquitos.
Ele pegou a caixinha e o papel. Já não apertava tão fortemente o
canivete. Sentira paz na voz do homem.
Abaixou-se, ajeitou o papel em meio aos gravetos e riscou o fósforo.
Ateou fogo ao papel. A madeira gemeu e se deixou incendiar. A lenha cheirava
como bolo que acabara de ser assado.
- Obrigado, - ele disse. E devolveu os fósforos.
- Fique com eles, - disse o homem. – Pode precisar mais tarde.
A pequena fogueira iluminou o rosto do menino. Era ainda mais belo,
sob aquela chama tremeluzente. Iluminou também o rosto da mulher. Como a amava!
- Nasceu há pouco, - ele falou. – Por pouco não nasceu na rua.
- Como se chama a criança? – perguntou o do cigarro.
- Ainda não decidimos, - ele falou.
- E a mãe? – quis saber o outro,
- Maria, - ele disse.
- Que têm para comer? – perguntou o segundo vulto.
- Nada, - ele falou. E reparou, à luz da fogueirinha, como eram
magros os três.
- Tome, - disse o segundo, e lhe alcançou três pãezinhos. – Também
ainda tenho esse litro de leite. Para a mulher. Precisa se alimentar. – E lhe
entregou o leite.
Ele recebeu os alimentos, enternecido. E já não precisava mais ter
em quem bater. A raiva abandonara seu peito.
- Deus lhe pague, - ele balbuciou, lembrando que ela dissera “Deus proverá”. E sentiu outra lágrima aquecer-lhe a face.
- Deus lhe pague, - ele balbuciou, lembrando que ela dissera “Deus proverá”. E sentiu outra lágrima aquecer-lhe a face.
- Tome, - disse o terceiro homem. – Vai precisar amanhã cedo. É
pouco, mas é o que tenho, - e lhe alcançou uma cédula de vinte reais.
Ele chorou em silêncio. O rosto do menino parecia sorrir. O da
mulher também.
- Vamos seguir caminho. Vocês precisam de sossego. Não vamos
atrapalhar, - disse o do cigarro, com a voz embargada.
Despediram-se e sumiram na escuridão.
“Como três magos do Oriente”, ele pensou. “Deus proverá”, repetiu.
Não eram ouro, incenso e mirra... Eram fósforos, leite e pão e um
dia de sobrevida para a mulher e para o menino.
Não teve como evitar o sorriso ao pensar: “Três magros! Como eram
magros os magos!”
A luz voltou, iluminando a cidade. Não via mais os três homens, nem
os veria mais. Não importava. Eles haviam feito a sua parte. Haviam mostrado o
que era Natal: a presença de Deus no mundo, debaixo do viaduto.
P. Dr. Carlos Arthur Dreher
Natal de 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário