quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Conto de Natal


Natal dos bichos



- Que é isso? – berrou o boi que acabara de se levantar. Acordara de um breve cochilo e, mais por hábito que por necessidade, sentira fome. Achegara-se ao cocho, no qual, costumeiramente, havia palha. Porém, sobre a palha, deparara com um estranho ser vivo, pequeno e envolto em panos.
- Que é isso? – repetiu o berro.
- Psiu!... Calma, calma! – falou o jumento.
- Quem é você? – perguntou o boi, irritado com a intromissão do desconhecido.
- Um jumento, - respondeu o outro, que de burro não tinha nada. – Cheguei há pouco. Foi uma viagem bem longa. Três dias. Sempre com a mulher no lombo.
- Mulher? Que mulher? – quis saber o boi.
- Aquela ali ao lado – retrucou o jumento. – Dormiu depois do parto. Ficou bem cansada.
- Parto? Que parto? – perguntou o boi.
- Você estava dormindo quando chegamos. Não viu nada.
O boi, curioso, observou a mulher que dormia ao lado do cocho. Ressonava tranquila, o rosto plácido, tinha um quase sorriso nos lábios.
Lentamente, voltou para o seu canto da estrebaria. Ficou alguns instantes ali, matutando. Não estava entendendo direito. Uma coisa viva no cocho... Uma mulher deitada ao lado... Parto, dissera o jumento... Que diabo era um parto?
Só então reparou que uma pequena fogueira crepitava ao lado do cocho. Por isso notara o pequeno e estranho ser vivo sobre a palha. A fogueira iluminava o local um pouco mais do que a meia-lua resplandecente no céu.
Voltou para junto do cocho. Observou detidamente o seu conteúdo.
- Eu não vou comer isso! – sentenciou.
O jumento desatou a rir.
- Parece que o burro aqui é você – disse para o boi. – Não é comida, idiota! É uma criança!
- Criança? – perguntou o boi, cada vez mais apalermado. – O que é uma criança?
- A cria da mulher – respondeu o jumento. – Preste atenção: “cria” de mulher é “criança”. Nasceu há pouco. Não é bonita?
O boi olhou para a criança. Já vira coisa parecida. Porém, nunca num cocho. A que vira caminhava sobre duas pernas. Vinha, às vezes, com seu dono até o estábulo, mas nunca deitara no cocho.
- Mas por que a puseram no cocho? – quis saber.
- Quando chegamos à cidade, já estava anoitecendo. O homem procurou lugar na estalagem. Não tinha. Foi perguntando de porta em porta, e nada de achar lugar. Até que alguém falou: “Só tem a estrebaria”. Sem saída, o homem olhou com tristeza para a mulher. Ela sorriu e disse: “Não faz mal, José. A gente dorme lá mesmo.”
O boi olhou para o lado. Só então reparou no homem semiadormecido, que se apoiava, cansado, em seu cajado.
- É esse o homem? – perguntou o boi.
- É – disse o jumento. – É o pai da criança.
- Pai – repetiu o boi. E voltou a olhar para a criança no cocho.
O boi olhou para o homem, depois para a mulher. Por fim, voltou os olhos para o cocho.
- Engraçado – ele disse. – Nem estou com fome.
Aproximou-se do cocho. Inclinou a cabeça sobre a criança. Cheirou-a brevemente. Assustou-se quando ela moveu os bracinhos em meio ao sono.
- Tem cheiro bom – disse. – E é bonita!
A mão da criança moveu-se e tocou levemente o focinho do animal. O boi estremeceu. Um arrepio gostoso percorreu-lhe o corpo. Seus olhos brilharam, úmidos.
Foi então que novos personagens apareceram. Outro homem entrara na estrebaria. Tinha uma ovelhinha sobre os ombros. Desceu o animal e ajoelhou-se ao lado da manjedoura.
- Olá! – saudou a ovelha. – Vocês também viram os anjos?
- Anjos? – falou o boi, surpreso. – Que são anjos?
- Uns pássaros brancos com cabeça de gente, - replicou a ovelha.
- Pássaros com cabeça de gente? – quis saber o boi.
- É. Eu também nunca tinha visto. Também não sabia, - disse a ovelha, sorridente. – Um dos nossos cuidadores falou que o nome era esse. Chegaram de repente. Vieram do céu. Minhas companheiras estavam todas dormindo. Só eu não conseguia pegar no sono. Foi por isso que vi os anjos.
- Onde foi isso? – quis saber o jumento.
- Perto daqui, - respondeu a ovelha.
- E quando? – perguntou o boi.
- Não faz muito tempo, - disse a ovelha. – Os anjos cantavam, falando de um menino. “O Salvador”, disseram. “Em Belém, num cocho”. Depois ainda falaram em paz. “Paz na terra entre as pessoas, pois Deus gosta delas”.
- E dos bichos também! – ecoou uma voz suave e meiga.
- Quem falou isso? – perguntou o boi, assustado.
- Eu não disse nada, - falou o jumento.
- Eu também não falei isso, - disse a ovelha.
Olharam ao redor. A mulher ainda dormia. O homem do cajado roncava levemente, mesmo que em pé, apoiado em seu cajado. O pastor recostara-se a um canto da estrebaria e também dormia tranquilo.
Quem falara aquelas palavras? Nenhum dos três tinha uma resposta.
- Deus gosta dos bichos também, - insistiu a voz.
Foi o boi que se apercebeu primeiro. Era a criança no cocho quem falava assim.
Aproximou-se do cocho. O jumento e a ovelha o seguiram. Agora estavam os três ao redor da criança. Então notaram que ela estava de olhos abertos e que sorria.
- Dos bichos também, - ela repetiu uma terceira vez. – Como eu, - completou.
Os três animais estavam atônitos. A criança falava! E sabia o que havia acontecido. 
- Você..., você..., - gaguejou o boi. – Você é o Salvador?
- Foi de você que os anjos falaram? – perguntou a ovelha.
- O Salvador dos bichos? – quis saber o jumento.
A criança sorriu. Ergueu as mãozinhas e acariciou cada um daqueles três focinhos.
Não foi preciso dizer mais nada. Ao seu toque, à sua carícia, os três sentiram e entenderam que este era o menino dos anjos, o menino de Deus, o Deus-Menino.
O boi, enternecido, lambeu aquele rostinho bonito e cheiroso. E o menino desatou a rir, como se sentisse cócegas.
De um jeito um tanto desengonçado, o jumento também riu. Era um riso desengonçado, mas feliz, infinitamente feliz: Deus gostava dos bichos também!
A ovelha não se continha de alegria. Ficara acordada, como se tivesse sido escolhida para ouvir e experimentar aquela boa notícia. Vira e ouvira os anjos. E agora via e sentia o Salvador.
Também a ovelha e o jumento lamberam, enternecidos, o rosto da criança. Era seu jeito de demonstrar carinho.
E a criança ria. Um riso cristalino e feliz por sentir amor e ternura naquelas línguas ásperas.
Ao lado, Maria, José e o pastor de ovelhas dormiam profundamente, sem notar nada do que acontecia.
Dizem que é assim que acontece a cada Natal, na madrugada de 24 para 25 de dezembro. Depois que todas as pessoas já foram dormir, após as canções, as orações, a ceia e os presentes de Natal, o jumento, o boi e a ovelha do presépio vão conversar com o Menino Jesus na manjedoura.
Naquela primeira noite, os três se tornaram eternos. Passado o Natal, são guardados numa caixa de sapato, e ficam ali, até que, um ano depois, voltam a ocupar seu lugar sob a árvore cheia de luzes.
Ficam ali, quietinhos, até que todas as pessoas vão dormir. É aí que começa o Natal dos bichos.
Pessoalmente, nunca tive a oportunidade de ver isso acontecer. É que, quando notam alguma pessoa chegando, os três animais e o Menino Jesus voltam imediatamente aos seus lugares e ficam ali, imóveis.
Quem me contou esta história disse que teve a sorte de ver o que acontecia, sem que as figuras do presépio o notassem. E essa pessoa me disse que acontece muito mais naquela madrugada.
Não são só o jumento, o boi e a ovelha que conversam com Jesus. Naquela madrugada, sem que se saiba de onde, aparecem o gato e o cachorro, o pato e a galinha, o cavalo e o coelho, a cobra e o lagarto, o leão e o tigre, o lobo e a hiena. Ouvi dizer que até o elefante, a girafa, o camelo e o hipopótamo apareceram por lá.
Aparecem todos os bichos. É claro, não os peixinhos, que não podem sair da água. Mas há quem diga que uma gaivota que assistiu a cena voa alucinada até a praia e conta o que viu. Para garantir que é verdade, toma um peixinho na boca e o leva até a manjedoura. Depois o leva de volta. É aí que a notícia se espalha em segundos pelos mares, lagos, rios e riachos. E todos os peixes dançam alegremente nas águas que, naquela madrugada, ficam despoluídas. Os golfinhos saltam como nunca, e a baleia lança jatos e mais jatos de água.
Lá no presépio, repentinamente uma revoada de pássaros multicores, voando por uma fresta da janela, se empoleira nos galhos da árvore de Natal. Num coral de fazer inveja aos melhores corais do mundo, cantam glórias e aleluias. Há quem diga que nunca ouviu uma execução tão perfeita de “Jesus, alegria dos homens” como a deles.
É o Natal dos bichos.
Não há presentes nem ceia. Naquela noite os animais não sentem fome. Sentem só alegria. Sentem amor. Não são maltratados. São ternamente amados pelo menino, que insiste em repetir:
- Deus ama os bichos também!
E os bichos sonham com um novo céu e uma nova terra, nos quais não haverá mais sofrimento, nem entre as pessoas nem entre os bichos. Boas pessoas tratarão bem dos animais. Não haverá mais cavalo esquelético puxando carroças sobrecarregadas, nem cachorros abandonados pelas ruas. Muito menos, peixes morrendo por falta de oxigênio nos rios, ou espécies de animais ameaçadas de extinção.
E os anjos, aqueles pássaros brancos com cara de gente, vão cantar o tempo todo: “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre as pessoas e os bichos, porque Deus ama a todas as suas criaturas”.



P. Carlos Arthur Dreher
24 de dezembro de 2013


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